Pssica: maldição, dor e resistência; uma força visual brasileira
- Giovanna Victoria

- 1 de out.
- 5 min de leitura

Este texto contém spoilers da minissérie Pssica (Netflix, 2025)
Pssica (2025), minissérie de quatro episódios da Netflix inspirada no livro homônimo de Edyr Augusto, se apresenta como uma obra brutal, não só pela trama, mas pela maneira como devolve ao espectador uma região, uma cultura, uma dor que geralmente está de fora do centro do audiovisual nacional.
Dirigida por Quico Meirelles (em colaboração com Fernando Meirelles em um dos episódios) e com roteiro de Bráulio Mantovani, Fernando Garrido e Stephanie Degreas, Pssica articula uma narrativa em que a expressão visual, a ambientação e a forte presença regional se tornam tão personagens quanto Jana, Preá ou Mariangel.
Nesse sentido, a minissérie se insere numa linhagem de produções brasileiras como Central do Brasil, Cidade de Deus, Carandiru e Bacurau, que também revelam um Brasil invisibilizado, atravessado por violência, desigualdade, resistência e intensidade estética.

Enredos atravessados por violências e esperança
No centro da história, Janalice (Domithila Cattete) é uma jovem vítima de abusos, cujo vídeo íntimo vazado desencadeia uma série de eventos que a levam, por vias desumanas, ao tráfico sexual.
Paralelamente, Mariangel (Marleyda Soto) carrega a dor do assassinato de sua família, e Preá (Lucas Galvino), líder da gangue ribeirinha conhecida como “ratos d’água”, oscila entre a brutalidade e uma possível redenção. Todos eles são marcados pela “pssica” — maldição, mau presságio, destino inevitável Essa conjunção entre realismo cru e um elemento quase mítico que é a maldição, cria uma tensão constante: não se trata apenas de ver o que de pior o mundo pode fazer, mas de sentir como os personagens tentam resistir, sobreviver e controlar o próprio destino.
A tragédia pessoal de Jana, a sede de justiça de Mariangel, e o dilema moral de Preá formam um triângulo dramático que evita cair em uma abordagem simplória. Há falhas, sim, algumas das violências poderiam ser abordadas com mais cuidado para não escorregar para uma exposição gratuita, mas o pulso narrativo é sólido.
Estética, fotografia e brasilidade ribeirinha
A ambientação é filmada em Belém, no Pará, em comunidades ribeirinhas, no Marajó, nos rios. Tudo isso ajuda a materializar um Brasil que vai além dos grandes centros urbanos. Essa força estética coloca Pssica em diálogo com outras obras brasileiras que também conseguiram fazer o espaço ser protagonista.
Em Central do Brasil (1998, Walter Salles), vemos um país longe do eixo glamourizado, com foco em personagens marginalizados, atravessados por dor, desigualdade, mas também resistência e afeto. Já em Cidade de Deus (2002, Fernando Meirelles e Kátia Lund), a brutalidade da violência e a estética crua se tornam inseparáveis do ambiente retratado, algo que se conecta no modo como Pssica filma os rios e suas margens, belos e ameaçadores ao mesmo tempo.
A fotografia se vale de cores quentes, saturadas em momentos de intimidade ou de natureza exuberante, contraste forte entre o verde-oliva ou o laranja do entardecer nos rios, a terra úmida, o amarelo queimado, tons avermelhados que lembram tanto o barro quanto o sol forte.
Essa paleta reforça a brasilidade ribeirinha, o calor, físico e psicológico, dos ambientes. A luz natural é muito presente, sombra e claridade dançam nos barcos, nas margens, nas casas de madeira ou palafitas, nos rostos marcados pelo rio, pelo pó, pela chuva, pelo sol.
As locações fluviais, os cenários ribeirinhos, os interiores humildes mas vivos, a direção de arte, figurinos, maquiagem, trabalham não apenas para “emoldurar” a história, mas para dar corpo e textura. A natureza não é pano de fundo: é ameaça, abrigo, beleza e medo.
O olhar ético e social
Se Pssica chama atenção pelo que mostra, também podemos avaliar como ela mostra. Poder feminino / papel da mulher: Jana (Janalice) vive uma sucessão de violências, vazamento de vídeo, repudiada pela família, abusada, sequestrada e, no entanto, sua trajetória não é de submissão passiva. Ela resiste, busca ajuda, nega que um homem a “salve” definitivamente.
Esse recado importa muito, especialmente num contexto onde muitas produções ainda mantêm protagonistas femininas no lugar de vítima eterna. Sua escolha de fugir com Mariangel ao final em vez de seguir Preá reforça essa autonomia. A escolha de tratar essas violências com crueza conecta a minissérie a outros retratos de exclusão no audiovisual brasileiro.
Carandiru (2003, Hector Babenco) também mergulha em corpos vulneráveis e encarcerados, escancarando um sistema que produz violência em cadeia. E, mais recentemente, Bacurau (2019, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) trouxe o elemento mítico e simbólico para narrar uma resistência coletiva profundamente brasileira, em sintonia com a maldição da “pssica”, que funciona como metáfora do medo, do estigma e também da capacidade de reagir.

Cenários de pobreza, violência e desamor institucionalizado: A série não foge de mostrar como as desigualdades geográficas, sociais, religiosas, contribuem para o ciclo de violência. A pressão da comunidade religiosa para “consertar” Jana, o peso do julgamento moral, a invisibilidade das vítimas nos mecanismos legais, o tráfico que opera nos rios, tudo isso compõe um panorama que ecoa realidades brasileiras. Maldição / superstição como espelho cultural: A “pssica” funciona como uma metáfora poderosa. É maldição, mas é também medo, culpa, estigma invisível e comum em muitos lugares.
A série usa esse elemento para dar voz às crenças populares, às falas entre pessoas comuns, às expressões de religiosidade, superstição e ao mesmo tempo mostrar como essas crenças podem oprimir tanto quanto proteger.

Críticas e limites possíveis
Para equilibrar a apreciação, também vejo alguns pontos que ficaram na zona cinzenta ou poderiam ter sido melhor resolvidos: Violência gráfica e exposição: algumas cenas são intensas demais sem contraponto narrativo suficiente: há momentos em que o espectador é implicado demais no espanto, sem espaço para respirar, refletir, contextualizar. Isso gera impacto, mas também pode pesar.
Desenvolvimento de antecedentes: em algumas cenas, existe a sensação de que existem coisas implícitas que poderiam ser exploradas (por exemplo, memória de Jana, possível relação antiga com Preá) realmente fica meio no ar. Em certos casos, a tensão dramática poderia ganhar mais, se houvesse flashbacks ou lembranças mais sedimentadas.
O olhar de fora e sensibilidade no tratamento: esse tema de exploração sexual, vítimas menores, tráfico, corpos vulneráveis exige uma atenção constante para evitar o voyeurismo (o chamado “male gaze”, como alguns críticos apontaram).
A série faz bastante uso de imagens fortes; em parte isso é necessário para denunciar, mas em outras talvez pudesse haver escolhas visuais que denunciem sem expor de modo tão explícito, preservando alguma subjetividade do ponto de vista da vítima.
No geral, Pssica é uma minissérie poderosa porque não só denuncia: ela faz do olhar, da estética e do lugar, algo vibrante, incômodo e urgente. Ela nos lembra que há realidades brasileiras que se espalham pelas margens dos rios, das cidades, da invisibilidade social e que há beleza, dor e resistência nessas margens.
Se “pssica” é maldição, Pssica é resistência; é buscar luz no escuro dos rios, é afirmar identidade, é exigir justiça. E fazer isso visualmente belo, brutalmente honesto, é para mim um dos seus maiores trunfos









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